Vez ou outra este blog posta algumas listas, os "10 livros que (alguma coisa)". Não sei se alguém já tentou montar um lista, mas não é nada fácil. Há um filme chamado Alta Fidelidade, baseado no livro homônimo de Nick Hornby, no qual um dos personagens tem por mania fazer listas. Depois que vi o filme tentei fazer as minhas 10 músicas favoritas, então diminui para 5 e estou até hoje sem saber quem merece ocupar a 1a. posição. A verdade é que toda lista é muito subjetiva e os critérios nem sempre são claros.
Bom, mas o blog Livros só mudam pessoas gosta de listas e postou recentemente uma com os "10 livros que estragaram o mundo", assinada por "Liliana". Seria muito forte dizer que discordo da lista, mas não concordo com tudo, a começar pelo título. Livro estraga o mundo ou as pessoas (leitoras ou não) o estragam?
A autora toma o cuidado de destacar logo no início que as leituras muitas vezes equivocadas causaram males, em alguns casos, superiores ao benefício da circulação das ideias ali contidas. Sou levado a concordar quando penso no 7o. colocado: Minha Luta, de Adolf Hitler. O único benefício da publicação deste livro em 1924 teria sido alertar o mundo para os riscos da ascensão de Hitler e dos nazistas ao poder. Porém "ninguém" prestou atenção ou, mais provável, poucas pessoas viram algum inconveniente em um defensor da pureza étnica, da eliminação de judeus, do expansionismo militar e do nacionalismo chauvinista ocupar o poder que veio a ocupar. Quando, em 1933, Hitler finalmente conseguiu o que tanto queria, se tornar o líder supremo da Alemanha, enquanto Inglaterra e França (ou qualquer outro país da Liga das Nações) mantiveram-se em considerável silêncio. Nem mesmo depois que o governo alemão começou a se armar, anexar os Sudetos, a Áustria, etc., essa posição mudou.
E porque não fizeram nada? Porque provavelmente os governos dos demais países concordavam em parte com esta lista. Na 2a. posição consta o Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, escrito em 1848. Este livro estragou o mundo? A não ser que, sob uma lógica extremamente conservadora, se considere que propor uma alternativa à exploração dos trabalhadores seja estragar o mundo. E nunca é demais deixar claro que da ideia à prática há uma enorme distância, tanto é que nem o marxismo se resume ao Manifesto, nem os regimes comunistas que existiram ao longo do século XX foram inspirados apenas neste livro escrito em sintonia com um mundo muito específico: a luta operária de meados do século XIX na Europa Central.
No entanto, o pavor gerado nos capitalistas (liberais na economia e conservadores na política) pela crítica comunista levou a uma interpretação muito peculiar do mundo no século XX, ainda mais depois da Revolução Russa de 1917: a onda vermelha poderia varrer todo o globo e isso era inadmissível para eles. Diante deste medo doentio e desejo supremo de garantir seus ganhos com a propriedade privada, os governos europeus das décadas de 1920 e 1930 aceitaram que homens como Mussolini e Hitler fizessem o serviço sujo de eliminar comunistas, socialistas e anarquistas. E aquele livro de 1924 que "estragou o mundo" foi ignorado.Talvez a culpa desta situação se deva à leitura do 8o. lugar da Lista: O Príncipe, de Maquiavel. Segundo a autora do post,
É este livro que sugere a famosa expressão os fins justificam os meios, significando que não importa o que o governante faça em seus domínios, desde que seja para manter-se como autoridade, entretanto a expressão não se encontra no texto, mas tornou-se uma interpretação tradicional do pensamento maquiavélico.
Escrito em 1532, O Príncipe tem cara de manual de governo, mas é na verdade um estudo de práticas de governantes segundo a obervação de Maquiavel. Considerar que este livro "estragou" o mundo apenas porque foi lido por Napoleão, Stalin e Hitler, parece-me um bocado absurdo. Ainda mais porque Churchill certamente também o leu, assim como todos que transitam pela política. E se, por um lado todos citam que "os fins justificam os meios" sem que esta frase esteja na obra, por outro lado, esquecem (ou não sabem) que Maquiavel também afirmava que o príncipe pode ser amado ou temido, sendo preferível que seja amado.
Depois de pensar essas três obras fico me perguntando qual o significado do 5o. colocado: Democracia e educação, de John Dewey. Para a autora, o que justifica a presença deste livro de 1916 na Lista é o convencimento do mundo de que a educação não é sobre fatos, e que "a educação está centrada no desenvolvimento da capacidade de raciocínio e espírito crítico do aluno".
Hã? Isso estragou o mundo?!? Concordaria se Liliana tivesse dito que a má interpretação ou má aplicação das ideias de Dewey gerou adultos sem espírito crítico e autonomia intelectual. Mas dizer que a consequência da leitura equivocada de Democracia e educação levou a "uma geração de jovens com uma educação de qualidade inferior, que carece de uma sólida fundação em fatos e conhecimentos"?!
Certamente se houvesse mais espírito crítico não veríamos o século XX que vivemos onde os leitores de Minha Luta puderam combater com armas em mãos os leitores do Manifesto do Partido Comunista sem que sofressem qualquer interferência dos liberais-conservadores leitores equivocados de O Príncipe.
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